“Quem me dera ao menos uma vez explicar o que ninguém consegue entender, que o que aconteceu ainda está por vir e o futuro não é mais como era antigamente”, são versos de uma bela canção da Legião Urbana que nos leva a presumir que o individualismo e o consumismo não nos prepararam para a Covid-19.
Os antigos hábitos alimentados pela arrogância da ignorância nos deixam vulneráveis diante do invisível, mas letal, Coronavírus, colocando em xeque nossas certezas.
Permitam-me compartilhar algumas reflexões a partir de minha experiência como professora há pouco mais de vinte anos. Eu sempre tive a preocupação em ensinar a importância de vencer o individualismo por meio de trabalhos e projetos voltados para o desenvolvimento do espírito de equipe, da colaboração em atividades em grupo, da valorização das múltiplas inteligências. Mas, percebia que as/os estudantes apenas “realizavam tarefas” para a obtenção da “nota”. Faltava algo mais objetivo, mais concreto, que realmente pudesse ser considerado para se constituir como um valor ou princípio a ser levado para a vida.
É aí que entram em cena as “bolinhas de papel” que toda sala de aula tem. Especialmente aquelas que se acomodam bem “ao lado do lixeirinho”, sabe?
No primeiro dia de aula, em nosso acordo didático, combino com as/os estudantes que atribuirei 40% da nota de cada unidade a um “simples” trabalho coletivo: manter a sala de aula limpa, sem nenhuma bolinha de papel, nem apara de lápis, etc., pelo chão. Tudo o que for lixo deve ser colocado no lixo. E explico que esse será um trabalho coletivo, um por todos e todos por um! Todo mundo é responsável para cumprir esta tarefa durante toda a unidade, senão todas/os da turma terão pontos descontados por cada dia que a tarefa não for cumprida.
Todas/os ficam eufóricas/os porque começam a calcular que só precisam tirar seis pra ficar com o almejado dez naquela unidade. E parece que vai ser muito fácil. Então, pra reforçar o entusiasmo, eu explico que esta “simples” atitude nos ensina a cuidar do bem comum, que todo mundo é responsável,que além de fazermos a nossa parte, temos que colaborar para que o outro também faça a sua. E que no fim todo mundo sai ganhando. Para ilustrar, deixava como exemplo combater a Dengue, que além de manter a minha casa em ordem, temos que cuidar que na vizinhança todo mundo faça o mesmo, pois se um não fizer, todo o bairro pode pegar a Dengue.Todas/os concordam até chegar o dia que descumprem a tarefa e eu as/os informo que perderam 10% daqueles pontinhos porque a sala está suja.
Me dizem que não é justo, que a maioria fez sua parte, que todo mundo não pode pagar pela irresponsabilidade de uma minoria, etc., etc., etc. (Embora tenhamos combinado que era um por todos e todos por um). Refaço toda a explanação sobre a importância de todo mundo fazer a sua parte, o que realmente significa um trabalho coletivo, como podemos pensar em alternativas para que o bem comum seja cuidado por todas/os... E seguimos durante todo o ano atravessando altos e baixos por este tema.
De repente, vem a Covid-19 e nos mostra que para enfrentar o Coronavírus tem que ser “um por todos e todos por um”, que todo mundo tem que fazer a sua parte, que precisamos pensar no coletivo, precisamos rever nossos hábitos e, acima de tudo, superarmos o individualismo.
Cumprir o isolamento social serve não apenas para que uma pessoa não adoeça, mas para que ela não seja uma transmissora do vírus letal. Ficar em quarentena nos mostra que a vida humana vem em primeiro lugar e, portanto, não temos o direito (ainda que tenhamos o dinheiro) de comprar todo o estoque de álcool em gel para auto-proteção, por exemplo.
A pandemia vem nos ensinar a ser mais solidário, a colocar em prática os discursos de empatia, a rever nossos hábitos desde os mais complexos como os hábitos de consumo até o mais simples hábito de lavar as mãos.
Eu espero que tudo isso sirva para que possamos desenvolver a capacidade de cuidar mais de nós mesmas/os, do outro, da nossa casa comum. Que possamos ampliar a nossa capacidade de visão e reflexão e, de fato, possamos ver “o mais simples como o mais importante” como nos ensina a canção que abre este texto.
Michele Guerreiro Ferreira (Doutora em Educação pela UFPE e professora de História da Rede Estadual de Pernambuco)